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Morihei Ueshiba, Budo e Kamae

Por que não sabemos como ficar em pé e andar?


Ficar em pé e andar - isso é bastante básico. É tão básico que é realmente a primeira coisa que você aprende na maioria dos budo, ou mesmo na vida - se alguém conseguir se lembrar até lá. Como todos os outros, recebi instruções básicas sobre como ficar em pé quando comecei o Aikido - apontar o pé da frente para a frente e o pé de trás para fora em um ângulo. Alguns lugares dividem isso em uma descrição mais detalhada, mas geralmente é isso.
Bastante fácil, certo? Qualquer um pode fazer isso - o que pode ser o problema. Se qualquer um pode fazer isso, e você está fazendo essencialmente a mesma coisa que sempre fez... por que está gastando todo esse tempo no tatame? 

Por Chistopher Li

Artigo publicado originalmente em 26 de fevereiro de 2012 no endereço: 

https://www.aikidosangenkai.org/blog/morihei-ueshiba-budo-kamae/

Traduzido e publicado com autorização do autor.



Kamae, do Manual Técnico Budo de Morihei Ueshiba publicado em 1938

"Budo" é um manual técnico anterior à [II] Guerra [Mundial] publicado em 1938 pelo Fundador do Aikido, Morihei Ueshiba. Foi originalmente criado para o Príncipe Kaya Tsunenori, membro de um ramo colateral da família imperial. Kayanomiya passado algum tempo se tornaria Superintendente da Escola do Exército Toyama - onde Morihei Ueshiba atuaria como instrutor antes da guerra.

"Budo" continua sendo a maior e mais organizada coleção de técnicas do período pré-guerra, e uma edição em inglês ("Budo: Ensinos do Fundador do Aikido"), traduzida por John Stevens, foi publicada em 1991.

Uma edição separada, a "Edição Especial Takemusu Aikido", traduzida por Sonoko Tanaka e Stanley A. Pranin, foi publicada em 1999 ("Budo: Comentários sobre o Manual de Treinamento de 1938 de Morihei Ueshiba"). Esta edição é composta por alguns trechos do texto japonês, juntamente com um comentário de Morihiro Saito, em inglês e japonês.

O texto original diz:

第二 準備動作

(一)構

氣勢ニヲ充實シ足ヲ六方ニ開キ半身入身合氣ノ姿勢ヲ以テ敵ニ對ス(第一圖)

總テ構ハ時、位置、土地ノ高低、其ノ時ノ勢等ニ因リ惟神ニ起ルモノニシテ常ニ構ハ心ニアルモノトス

足ノ踏ミ方ニハ外六方、内六方及外巴、内巴アリ練習ノ際ニ傅授ス

注意

練習ノ際シテハ敵ノ構、敵トノ間合ヲ考ヘ左或ハ右ノ構ヲ用フ動作ノ終リシ時兩足ハ常ニ六方ニ開キアル如ク練磨スル要ス

敵ニ正對スルハ隙多キヲ以テ不利トス


Minha tradução:

Seção 2: Movimentos Preparatórios

(1) Kamae

Encha-se com o poder do Ki, abra suas pernas em seis direções e encare o inimigo na postura hanmi irimi do Aiki (veja a Figura 1).

Ao assumir qualquer postura, alinhe-se com os princípios dos Kami de acordo com sua posição, o nível do terreno e seu espírito naquele momento, e sempre mantenha esta postura em seu coração.

No trabalho de pés, há seis direções externas e seis direções internas, bem como uma espiral externa e uma espiral interna, isso será ensinado na prática.

Cuidado:

Com relação à postura do inimigo no treinamento.

Esteja atento à distância entre você e o inimigo e assuma uma postura à esquerda ou à direita. No final de cada movimento, sempre abra ambas as pernas em seis direções, é necessário treinar isso.

Se você enfrentar diretamente o inimigo, haverá muitas aberturas e você estará em desvantagem.


Tradução de "Budo: Ensinos do Fundador do Aikido", feita por John Stevens:

2. Movimentos Básicos

(1) Postura

Encha-se de ki, assuma uma postura hanmi com os pés separados e abertos em um ângulo de sessenta graus, e encare seu oponente com uma postura aiki flexível.

A postura exata depende do tempo, do lugar e do terreno; além disso, deve surgir de acordo com os princípios divinos. Uma boa postura reflete um estado mental adequado.

Tanto o pé da frente quanto o pé de trás devem estar abertos em um ângulo de sessenta graus. A razão para isso se tornará clara na prática.

Nota: Durante a prática, esteja sempre atento à postura do seu oponente e à distância relativa dele; assuma, conforme necessário, uma postura à esquerda ou à direita. Quando o movimento terminar, é essencial que seus pés estejam sempre abertos em um ângulo de sessenta graus. Se você enfrentar seu oponente cheio de aberturas, estará em grande desvantagem.


Imediatamente, você pode ver algumas diferenças. Isso é normal - nuca se terá duas traduções [feitas por diferentes tradutores], especialmente de um idioma como o japonês, completamente iguais uma da outra. Pode haver diferenças na expressão, na forma como o tradutor escolheu ou foi capaz de interpretar a obra, e [até mesmo] podem haver erros.

Algumas frases em japonês não podem ser traduzidas diretamente para o inglês sem perder seu significado original - e o mesmo para frases em inglês para o japonês.


Olhando os trechos acima, há algumas diferenças pequenas e outras não tão pequenas.


O título da seção, por exemplo, eu traduzi como "Movimentos Preparatórios", em vez de "Movimentos Básicos". A minha é uma tradução mais literal do japonês real, mas se você comparar as duas, verá que, no final, a diferença realmente não é muito importante. Quem se importa? Não eu.


No entanto, há outras diferenças mais abaixo. Eu traduzi a primeira frase do trecho como:

"Encha-se com o poder do Ki, abra suas pernas em seis direções e encare o inimigo na postura hanmi irimi do Aiki (veja a Figura 1)."

Já a tradução de John Stevens é:

"Encha-se de ki, assuma uma postura hanmi com os pés separados e abertos em um ângulo de sessenta graus, e encare seu oponente com uma postura aiki flexível."


Há dois grandes problemas aqui.


Primeiro, a palavra "flexível" parece ter sido inserida no lugar de "irimi". Isso parece um pouco estranho, já que a maioria dos estudantes de Aikido deveria estar familiarizada pelo menos com o conceito básico de irimi - e não tenho certeza exatamente como Ueshiba estava tentando expressar "flexibilidade" com a palavra neste caso (posso imaginar algumas possibilidades - mas envolve uma quantidade justa de especulação).

Em segundo lugar, e provavelmente mais importante, a frase "abra suas pernas em seis direções" é substituída, na tradução de Stevens, por "pés abertos e afastados em um ângulo de sessenta graus", o que é completamente diferente do texto japonês original - que lê como eu representei acima.


Isso importa?


Bem, vamos olhar para "roppo", ou "seis direções".

Há outra tradução parcial de "Budo", de Sonoko Tanaka e Stanley A. Pranin, publicada como "Budo: Comentários sobre o Manual de Treinamento de 1938 de Morihei Ueshiba". Nesse texto, eles observam que o texto japonês original na verdade diz "seis direções".


Problema resolvido?


Talvez não, porque a afirmação apresentada lá é que "seis direções" é basicamente outra maneira de dizer "hanmi", que não estava em uso comum naquela época.


Agora o problema está resolvido?


Novamente, talvez não. Curiosamente, a palavra "hanmi" aparece na primeira frase do texto japonês original. Se a palavra "hanmi" não estava em uso comum na época, por que Morihei Ueshiba usaria tanto essa palavra quanto "seis direções" na mesma frase?


O que, então, poderia significar "seis direções"?


De modo bastante interessante, "seis direções" é um termo comum nas artes marciais internas chinesas. Dê uma olhada em Liu Mian Mo Li (六面摸力) no Yiquan, por exemplo - uma força equilibrada através do seu corpo em seis direções. Neste caso, estamos falando de estabilidade básica em todas as direções - algo que faz todo sentido em termos de ficar em pé e andar em uma situação marcial. Isso é bastante comum nas artes marciais internas chinesas - por exemplo, aqui está um bom exemplo de força de seis direções no Xingyi Quan.

Mais uma nota interessante - em "Budo: Comentários sobre o Manual de Treinamento de 1938 de Morihei Ueshiba", eles também observam que [o] "passo a partir de uma postura de roppo" [seis direções] é usado no Kabuki também. O que não é observado, no entanto, é que algumas escolas tradicionais de Noh também usam essa frase - no sentido de estabilidade universal e forças equilibradas que são compartilhadas com as artes marciais internas chinesas.


Passemos a outra linha das das traduções, [iniciando com o que consta da minha]:

No trabalho de pés, há seis direções externas e seis direções internas, bem como uma espiral externa e uma espiral interna, isso será ensinado na prática.


Na tradução de John Stevens, esta linha é traduzida como:

Tanto o pé da frente quanto o pé de trás devem estar abertos em um ângulo de sessenta graus. A razão para isso se tornará clara na prática.


Novamente, vemos que a frase "seis direções" foi substituída por "ângulo de sessenta graus", embora isso esteja totalmente em desacordo com o japonês original.

Além disso, a frase "uma espiral externa e uma espiral interna" foi completamente omitida da tradução para o inglês em "Budo: Ensinos do Fundador do Aikido". Essas espirais também são omitidas de "Budo: Comentários sobre o Manual de Treinamento de 1938 de Morihei Ueshiba".

Então... essa seção da descrição realmente importa?

Bem, suponho que se possa argumentar que, apenas pelo bem da precisão histórica, é importante fornecer uma tradução o mais completa possível.


Mas há mais.


Espirais internas e externas através das pernas e do corpo também são comumente descritas nas artes marciais internas chinesas (pode haver um tema se desenvolvendo aqui!). Aqui está um diagrama e um trecho de texto de "Explicações Ilustradas do Taijiquan da Família Chen" por Chen Xin, com ênfase na seção sublinhada que é minha.

O poder de enrolamento (Chan Jin) está por todo o corpo. Simplificando ao máximo, há um enrolamento para dentro (Li Chan) e um enrolamento para fora (Wai Chan), que ambos aparecem quando alguém se move. Existe um tipo de enrolamento quando a mão esquerda está na frente e a mão direita está atrás; (ou quando) a mão direita está na frente e a mão esquerda está atrás; este fecha (He) (as mãos) com um movimento conforme (Shun). Há também um (enrolamento) que fecha o interior do lado esquerdo (do corpo) e as costas do lado direito (do corpo), e outro que usa o poder através das costas (Fanbei Jin) e fecha em direção às costas. Todos eles devem ser movidos naturalmente de acordo com as posturas específicas.

Quando o Qi da mão se move para a parte de trás do pé, então o dedão do pé se fecha simultaneamente com a mão e apenas neste momento (um pode) pisar firmemente.



Explicações ilustradas do Taijiquan da Família Chen

Você já tinha ouvido falar disso? Eu [ainda] não tinha - porque não aparece em nenhuma das traduções em inglês publicadas.

Mas e quanto às edições japonesas?

Bem... não existem.

Por incrível que pareça, nunca houve uma republicação comercial do texto de "Budo" em japonês. As únicas pessoas no Japão que leram "Budo" são aquelas que conseguiram obter a publicação original ou uma cópia caseira. A própria existência de "Budo" era conhecida apenas por algumas pessoas até que fosse redescoberta por Stan Pranin através de Zenzaburo Akazawa (um aluno pré-guerra de Ueshiba) por volta de 1979. Até mesmo Morihiro Saito, que, poderia-se argumentar, passou mais tempo sozinho com Ueshiba após a guerra do que qualquer outra pessoa, ficou surpreso ao saber desse texto!

Então... assim como no post do blog "Kiichi Hogen e o Segredo do Aikido", temos mais uma vez Morihei Ueshiba citando um conceito básico das artes marciais chinesas como central para o Aikido.

Também temos um exemplo claro do problema que existe na transmissão de informações básicas no Aikido - tanto do lado inglês quanto do japonês.

O que não sabemos, e o que não sabemos que não sabemos?

E por que não estamos examinando isso mais de perto?


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