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A prática diligente: o que isso significa?

Por vezes nos deparamos com a afirmação de que as artes marciais devem ser praticadas dligentemente. Mas o que efetivamente isso significa? Treinar até o limite da exaustão? Buscar sempre criar uim cenário próximo do real? Praticar todos os dias por longos períodos? Recentemente, ao apresentar o Código de Ética do Aikido, apontamos que seu primeiro item enuncia a necessidade do aúmulo de treinamento diário e o trabalho árduo a fim de fortalecer a mente e o corpo por meio da prática do Aikido.


O presente artigo busca oferecer uma interpretação dessa mesma ideia a partir dos ensinamentos de  Sensei Onuma Hideharu, Hanshi 9° Dan de Kyudo (弓道) e líder da 15ª geração da escolha Heki Ryu Sekka-Ha, tendo sido membro de uma respeitada família de praticantes desta arte. Esses ensimamentos fazem parte da obra  Espírito Iluminado (Iluminated Spirit) que foi publicada pela Koryu Books em 1996, tendo sido a obra escrita por Dan e Jackie Deprospero a partir da experiência que tiveram com essa arte marcial durante o tempo em que viveram no Japão iniciado em 1981.



Onuma Hideharu Sensei
Fonte: United Kingdom Kyudo Association - UKKA


Segundo os autores, Sensei Hideharu repetidamente dizia que a prática diligente e esforçada do Kyudo poderia  ajudar a mudar a vida dos praticantes para melhor. Para o Sensei o Kyudo é um meio de observar, entender e mudar sua própria vida. Ele trabalhava apenas consigo mesmo, acreditando que cada um de nós é total e completamente responsável por melhorar seu próprio caráter. O Sensei tinha fé que se cada ser humano abordasse a vida dessa maneira, o resultado seria relacionamentos mais suaves, uma sociedade mais cuidadosa e, em última análise, um mundo melhor para se viver. Segundo o Sensei,  a prática por si só não seria, contudo, estar inspirado e atento à manutenção dos ideais, porque sem eles nossa prática seria fraca e superficial. 



Capa do livro Iluminated Spirit
Capa do livro Iluminated Spirit


A fim de tentar entender algo, Onuma Sensei diza que era necessário buscar a essência desse objeto de estudo / prática. Sem descuidar do fato de que a habilidade é algo importante, ela é apenas uma pequena ponta de um iceberg maior. Ao se observar uma demonstração de alguém tecnicamente habilidoso, mas sem entendimento da essência de suas próprias ações, tem-se a sensação de que falta algo. As ações podem estar corretas e os movimentos precisos, mas a demonstração não toca o coração daqueles que a assistem. Fica-se a impressão de que todo o significado e propósito tivessem sido ignorados em f avor da expertise técnica e a demonstração foi privada daquilo que é a coisa mais crucial para seu sucesso: sua essência. 


Segundo os autores, para o Sensei Onuma, essa essência é um produto do espírito humano que reside profundamente dentro de todos nós. Quando acessamos o espírito humano e trazemos seu poder à tona, ele serve como uma base sobre a qual construir habilidades técnicas, adicionando profundidade e sentimento às demonstrações. 


Muitas vezes, o espírito pode ficar entorpecido pelo modo de vida moderno, mas ele pode ser estimulado e trazido à superfície de várias maneiras. Uma das formas é a respiração consciente, amplamente utilizada em diversas práticas religiosas e nas artes marciais. [nota: supõe-se que o termo consciente aqui diz respeito ao tipo de prática conhecido como "atenção plena" ou mindfulness).


Outra forma de estimular o espírito e de colocá-lo na prática diária é o movimento consciente. Os autores afirmam que Sensei Onuma era incomparável em sua capacidade de se mover com tamanha graça, dignidade e força espiritual que sua entrada em uma sala cheia de pessoas inevitavelmente chamava a atenção de todos presentes. 



Capa do livro Remembering O-Sensei


É interessante notar que impressões semelhantes a essa são apresentadas por pessoas que conviveram com Morihei Ueshiba, a exemplo das seguintes, extraídas da obra Lembranças sobre O-Sensei (Remembering O-Sensei, editado por Susan Perry):


Eu havia lido um ou dois livros sobre Aikido. Eu li que O-Sensei era o mestre e também já tinha visto algumas de suas fotos. Quando entrei, fiquei impressionado como os olhos de O-Sensei cintilavam. Eu poderia jurar que seus olhos eram azuis, mas eu sabia que japoneses não tinham olhos azuis, então eles não poderiam ser azuis. Mas eles eram tão claros e tão cintilantes, que a perplexidade tomou conta de mim. De alguma forma, estar na sua presença era como se eu estivesse conhecendo um homem extremamente marcante. Eu mal conseguia falar... (Robert Frager)


Robert Frager sendo uke de O-Sensei



Quando vi O-Sensei pela primeira vez, imediatamente senti que ele não era uma pessoa comum. Mesmo sendo ele baixo e com uma barba enorme, ele parecia um nobre. Em particular, suas feições eram de uma pessoa digna e solene e aparentava ser alguém que possuía um nível muito elevado de espiritualidade. (Guji Yukitara Yamamoto)

Um traço comum entre os relatos sobre Ueshiba Sensei e Onuma Sensei é o de que deve haver algo mais na prática do que o mero movimento físico. É preciso imprimir na prática a mente, o coração, o espírito.

Além disso, ainda no que se refere ao movimento consciente, Onuma Sensei insistia que antes de alguém poder aprender Kyudo, primeiro deveria aprender a fazer exercícios simples de ficar em pé, sentar e andar.


Mais importante ainda, ele enfatizava que a disciplina e a concentração necessárias para realizar os exercícios corretamente ao final trariam como recompensa um elevado grau de confiança, de estabilidade e de autoconhecimento que poderiam ser transplantados para qualquer aspecto da vida.


A partir dessas lições, acredita-se que trazer a prática do Dojo para a vida diária envolve mais do que buscar aplicar os preceitos filósoficos no dia a dia, mas também incorporar nos movimentos usuais da vida os princípios que norteiam os movimentos no Dojo. 

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