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Entrevista com Teruo Nakatani

Empresário, alpinista, ator de cinema. Esse foi Sensei Teruo Nakatani, nascido em uma cidade de apenas 6.000 habitantes e que deixou o Japão para se aventurar em terras brasileiras aqui chegando em 6 de novembro de 1961. Responsável por iniciar um grupo de Aikido no Rio de Janeiro que permanece ativo até os dias de hoje. Ciente de sua grande responsabilidade em ajudar a difundir o Aikido no exterior, quando não mais teve mais condições de seguir ensinando em virtude de compromissos profissionais e de uma lesão no joelho, solicitou auxílio a Yasuo Kobayashi para enviar um sucessor ao Brasil, tendo sido escolhido Ichitami Shikanai, hoje detentor do 8º Dan da Aikikai.

 

Nakatani Sensei

(Fonte: https://www.facebook.com/nakatani.sensei/photos

autoria da foto: Pedro Gavião)


A presente entrevista foi realizada no ano de 2009, quando Nakatani Sensei contava com a idade de 77 anos e se encontrava em Brasília (DF) por ocasião da concessão do 6° Dan da Aikikai para seu aluno, Sensei Martins, que introduziu o Aikido no Planalto Central. A gravação da entrevista foi realizada na residência do italiano Giampiero Mandaio, cinegrafista e testemunha da entrevista, praticante e amigo de Sensei João Gaeschlin, que detém o 4º Dan da Aikikai, estando ligado à Associação Mestre Martins de Aikido. A partir de informações com pessoas ligadas ao Sensei Nakatani, foi realizada interpretação da transcrição literal do áudio para tornar a leitura mais fluida, sem, contudo, alterar o sentido ou a mensagem que ele buscou transmitir em suas falas.

 

A autorização para divulgação neste blog foi gentilmente feita por J. F. Santos.



 Da esquerda para a direita, Martins Sensei, Nakatani Sensei e Santos Sensei em 2011

(Fonte: foto de autoria de Gustavo Nogueira Santos do acervo pessoal de J. F. Santos)

 

João Henrique Gaeschlin Rêgo

Sensei João Gaeschlin: Sensei, eu escrevi algumas perguntas para lhe fazer. A primeira delas é: em que cidade o senhor nasceu?

Nakatani Sensei: Uruyu (雨竜町).

Sensei João Gaeschlin: É no interior do Japão?

Nakatani Sensei: Sim.

Sensei João Gaeschlin: Fica a quantos quilômetros de Tóquio?

Nakatani Sensei: Acho que mil, mil e poucos quilômetros. No norte do Japão. Honshu é a maior ilha. Hokkaido, onde se localiza a cidade, é a segunda maior, localizando-se ao norte desta. 

 


Uruyu, em Hokkaido no Japão, que tinha 6.000 habitantes enquanto Sensei Nakatani viveu ali e hoje tem cerca de 18.000, com uma densidade demográfica de 12,70 pessoas por km2

(Fonte: Wikipedia)

 

Sensei João Gaeschlin: A atividade predominante lá na época era a agricultura?

Nakatani Sensei: Sim, era a agricultura. Antes desse período, havia bastante atividade de caça.

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor nasceu em que ano?

Nakatani Sensei: Em 1932.

 

Sensei João Gaeschlin: Quando e como se deu seu primeiro contato com as artes marciais?

Nakatani SenseiComecei Judô na época do científico. Naquele tempo o Judo era a arte marcial mais comum. Na época do meu científico, a prática de espada estava proibida. Antes, treinava-se mais espada, o kendo. O Japão perdeu a guerra e as forças de ocupação proibiram a prática do kendo. Por isso, o Judô era a única arte marcial popular naquela situação. Então treinei Judô.

 

Sensei João Gaeschlin: O Senhor treinou Judô por quanto tempo?

Nakatani Sensei: Por três anos. Treinei também um pouco de Kendô.

 

Sensei João Gaeschlin: Chegou a treinar Kendo?

Nakatani Sensei: Sim, mas muito pouco. A prática estava proibida. Treinava escondido, pouco depois de sair do Científico, por volta do final da década de 1940, início da década de 1950. Somente por de dez anos [do início] da Guerra é que a prática do Kendo voltou a ser liberada [1].

 

Sensei João Gaeschlin: O Senhor fez o curso científico na sua cidade?

Nakatani Sensei: Não. Em Asashikawa (旭川市). Havia uma base militar na cidade. O sétimo batalhão [do exército imperial japonês] estava sediado lá na época. 

Cidade de Asashikawa em 2016
(Fonte: Wikipedia)

 

Sensei João Gaeschlin: Como o Senhor conheceu o Aikido?

Nakatani Sensei: Quando entrei na Faculdade, em Tóquio. Foi no segundo ano de faculdade que comecei. Até o primeiro ano [do curso superior], treinava Judô. Depois, ao praticar alpinismo, machuquei o ombro esquerdo, e não pude prosseguir na prática desta arte marcial. Nessa ocasião, quase caí da montanha. Na escalada [a movimentação] é muito paralela. Cheguei a iniciar a prática do Karatê, mas ao conhecer’ o Aikido me dediquei a esta arte marcial.


Na escalada, braços esticados são braços felizes, pois permitem que a estrutura óssea suporte a maior parte do peso do corpo em vez dos músculos.

(Fonte: https://www.rei.com/learn/expert-advice/climbing-techniques.html)

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor praticou Karatê durante quanto tempo?

Nakatani Sensei: Não sei precisar com exatidão. Havia um grupo de filosofia oriental, um tipo de ioga, que estava sendo ensinada [2]. Nesse grupo conheci [Hiroshi] Tada, que era 6º Dan de Aikido naquela época. Ele também era originário do Karatê [3].


 

Hiroshi Tada, 9º Dan da Aikikai
 

Sensei João Gaeschlin: Foi ele quem lhe convidou para treinar Aikido?

Nakatani Sensei: Não, ele já era praticante, mas eu não sabia o que era Aikido. Decidi ir conhecer, compareci a uma aula, gostei e naquele instante decidi iniciar a prática.

 

Sensei João Gaeschlin: E como é que foi sua primeira aula, quando o senhor chegou na academia, o que o senhor achou? Achou muito diferente?

Nakatani Sensei: Não vejo muita diferença entre o Aikido de hoje e o daquela época. Lembro que comecei, acho que foi no final do ano, e estava muito frio. Em Tóquio chega a menos 2 ou menos 3 graus Celsius. Lembro que o Fundador do Aikido [Morihei Ueshiba] estava presente. Em uma hora de aula, ele falou de assustos espirituais por cerca de trinta minutos, e eu estava tremendo de frio [risos]. Pratiquei tendo aulas com ele por mais ou menos um ano e meio, e depois ele não apareceu mais. Em seguida o filho dele [Kishomaru Ueshiba] assumiu a turma. A partir de então, passei a dominar melhor as técnicas.

 


Nakatani Sensei executando Irimi Nage
Uke: Eduardo Adler

(Fonte: https://www.facebook.com/nakatani.sensei/photos

autoria da foto: Pedro Gavião)

 

Sensei João Gaeschlin: O filho do Fundador então é quem ensinava?

Nakatani Sensei: Não apenas ele. Os principais alunos do Fundador também davam aula. Era assim: na segunda-feira tinha aula do filho, Kishomaru; na quarta ou quinta tinha aula de [Koichi] Tohei, e nos outros dias, quem dava aula era [Hiroshi] Tada, 6º. Dan, [Yasuo] Kobayashi, que era 3º Dan, e Tamura, que era 5º Dan. Cada um tinha seu horário de aula. A aula da manhã era de 6:30h e até 7:30h, era a primeira aula do dia. A segunda aula, eu acho que era de 8:00 às 09:00h. A terceira aula era às 14:00h ou 15:00h. Eu treinava a noite, mas durante cerca de um ano, recebi o seguro desemprego e treinava o dia todo.

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor pode explicar um pouco melhor o que aconteceu em relação a essa situação do seguro-desemprego?

Nakatani Sensei: Por dois anos trabalhei para uma firma de plásticos que durante a guerra fabricava medidores de torpedo. Meu chefe, que foi coronel, controlava essa firma durante a [Segunda] Guerra. Ao término do período de guerra, ele entrou na firma como chefe de departamento e trabalhei como subordinado dele. Na época da [Universidade] Meiji, o meu departamento era meio de esquerda, e tinha muito professores e alunos de esquerda, e isso me influenciou bastante. Quando comecei a trabalhar na firma, não havia sindicato, de modo que eu e mais dois colegas criamos um. Por tê-lo criado eu não podia ficar mais na firma e não consegui arranjar emprego por ter sido colocado em alguma espécie de “lista de excluídos”. Então, nessa fase em que recebia o seguro-desemprego, eu procurava trabalho e aproveitava para treinar Aikido o dia inteiro. Sempre estavam ali o [Koichi] Tohei, o [Nobuyoshi] Tamura, o [Yasuo] Kobayashi, o [Masamichi] Noro. Eu estava sempre treinando com essas pessoas.


Nakatani Sensei no Japão, estando presentes na foto o Doshu Kishomaru Ueshiba, Yasuo Kobayashi, Katsuaki Asai, Yoshimitsu Yamada e Yasuo Kobayashi
(Fonte: acervo pessoal do entrevistado)


Sensei João Gaeschlin: Isso era na Hombu Dojo?

Nakatani Sensei: Não, em um Dojo antigo. Acho que tinha cerca de 80 peças de tatame, um Dojo pequeno, uma casa de madeira. Naquela época, [todas] essas pessoas estavam ali. Havia outros, como [Seiichi] Sugano, e [Kazuo] Chiba. Depois, um pouco mais tarde, ingressou [Mitsugi] Saotome. [Yoshimitsu] Yamada também estava lá nessa época.

 

Sensei João Gaeschlin: Yamada Sensei foi seu contemporâneo? Treinaram juntos?

Nakatani Sensei: Sim, ingressamos mais ou menos na mesma época. Ele também era aluno naquela ocasião. Treinei ali por aproximadamente cinco anos.

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor chegou a 3º Dan?

Nakatani Sensei: Não, ao 2º Dan.

 

Sensei João Gaeschlin: Havia exames de faixa naquela época?

Nakatani Sensei: Sim, havia. Kishomaru [Ueshiba] se encarregava dos exames. Ele marcava o dia e os candidatos iam até lá para serem examinados. Ao final, ele dava as notas.

 

Sensei João Gaeschlin: E quanto ao aquecimento no início das aulas, as práticas eram semelhantes às de hoje?

Nakatani Sensei: Sim, também não havia muita diferença em relação ao que é feito hoje. Acho que eram uns cinco minutos de aquecimento mais ou menos.

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor poderia falar um pouco mais de quando Mestre Ueshiba comparecia ao Dojo?

Nakatani Sensei: Sempre que ele comparecia, era na primeira aula, pela manhã.

 

Sensei João Gaeschlin: Então como o senhor treinava mais à noite teve pouco contato com ele?

Nakatani Sensei: Não. Eu iniciei no período noturno, mas muitas vezes frequentava a primeira aula também. Normalmente era ele quem dava essa aula. Durante um período que acredito ser de um ano, essa primeira aula sempre era dele.

 

Sensei João Gaeschlin: E o que ele falava? O que tentava transmitir aos alunos?

Nakatani Sensei: Normalmente ele falava sobre filosofia.

 

Sensei João Gaeschlin: E quanto à prática?

Nakatani Sensei: Ele falava por cerca de meia hora e havia meia hora de prática. Nesse período, normalmente era Tamura o assistente [uke] dele.

 

Nakatani Sensei: Queria falar um pouco agora sobre o Aikido no Rio de Janeiro.

Sensei João Gaeschlin: Como o senhor preferir Sensei.


 Nakatani Sensei ministrando uma aula

(Fonte: Canal ITNBrasil no Youtube)


Nakatani Sensei: Comecei o Aikido no Brasil por causa [de um convite] de Ogino, um professor de Judô. A academia dele era no Hospital dos Servidores. Era grande, acho que tinha quase 100 tatames. Era muito grande. Quando o conheci, ele me convidou para [dar aulas no] seu Dojo e me convenceu dizendo que, como havia saído do Japão havia cerca de um ano, deveria continuar a treinar para não esquecer o que aprendi. Foi assim que comecei a dar aulas na  academia dele. Isso foi no final de 1961.

 


Shihan Massami Ogino - 9º Dan de Judo

(Fonte: Equipe Ruffoni)

 

Nakatani SenseiFiquei na academia de Ogino nos anos de 1962 e 1963. Depois, durante a revolução de 1964 eu acho que já estava na academia George Mehdi, mas não tenho certeza exata do tempo que fiquei na academia de Sensei Ogino... acredito que fiquei 2 ou 3 anos com ele.

 

Nakatani SenseiDepois desse período, uma pessoa me apresentou a George Mehdi do Judô, que tinha uma academia em Ipanema. Ao me conhecer, ele me convidou para a academia dele e comecei a dar aulas ali. 

 


Sensei George Mehdi com Masahiko Kimura

(Fonte: https://www.global-training-report.com/Drysdale_Mehdi_lostpixx.htm)

 

Nakatani SenseiGeorge Mehdi era muito hábil em difundir o Aikido e com isso nossa arte marcial se expandiu. 

 

Nakatani Sensei na Academia de George Mehdi em 1965

(Fonte: Jornal do Brasil, 26 de fevereiro de 1965, página 17)



Matéria da página 17 do Jornal do Brasil em 26/02/1965 que demonstra o trabalho de divulgação do Aikido de George Mehdi que é mencionado por Nakatani Sensei

 (Fonte: Jornal do Brasil)


Sensei João Gaeschlin: No começo, lá no Hospital dos Servidores, quem eram os seus alunos?

Nakatani Sensei: Não me lembro com precisão de todos os nomes. Havia umas sete ou oito pessoas. Um deles vinha do Judo, apontado por Ogino para que fosse o meu uke. Era um português de nome Lopes.

 

Sensei João Gaeschlin: Ele foi seu primeiro aluno?

Nakatani Sensei: Sim, meu primeiro aluno, e por isso lembrei com mais facilidade do nome dele. Era faixa-preta de Judo e era meu uke quando eu fazia demonstrações de Aikido.

 

Sensei João Gaeschlin: Quando o senhor começou na academia do Mehdi foi que o número de alunos aumentou?

Nakatani Sensei: Sim, aumentou. Entraram muitas pessoas. A primeira lista de alunos se perdeu, e a segunda entreguei a Shikanai [Sensei]. Ele ainda a tem.

 

Sensei João Gaeschlin: O Guru [cujo nome é Oswaldo Simon] treinava nessa época?

Nakatani Sensei: Sim, o Guru, o [George] Prettyman, estão nessa segunda lista. Existiu uma primeira lista, mas essa não se sabe onde está. Havia também várias correspondências entre mim e Kishomaru, da Hombu Dojo. Eu recordo que tinha 20 ou 25 cartas.

 

Sensei João Gaeschlin: Entre o Senhor e Kishomaru [Sensei]?

Nakatani Sensei: Sim, Kishomaru sempre se correspondia comigo. Perguntava como eu estava. Não sei com certeza quem jogou fora estas cartas depois que eu saí da academia. Outras coisas se perderam também, não tenho certeza.


Santos Sensei, Kawai Sensei, Doshu Kishomaru Ueshiba, Nakatani Sensei, Paraguassu e Nagao, o que demonstra o apreço que o filho do Fundador do Aikido tinha pelos dois pioneiros da arte no Brasil ao se confraternizar com ambos durante sua segunda visita ao país em 1990

(Fonte: Mario Coutinho Jr. e J. F. Santos)


Sensei João Gaeschlin: Então todas essas cartas foram perdidas?

Nakatani Sensei: As mais antigas que estavam na academia se perderam sim, algo que me deixa bastante triste, mas eu guardava em casa mais ou menos a metade. Essas estão com Shikanai Sensei. As cartas perdidas estavam na academia que funcionava [na Rua Barata Ribeiro] em Copacabana. Lá estavam guardados documentos do Japão. Por dois ou três anos não encontrei com Adélio [que assumiu a academia] porque eu estava ocupado com o trabalho e não podia estar sempre presente.

 

Sensei João Gaeschlin: Quanto tempo ficou na academia de George Mehdi?

Nakatani Sensei: Uns quatro ou cinco anos. Depois fui para a academia da Praça da Bandeira, onde fiquei um ou dois anos, e por fim na academia da [Rua] Barata Ribeiro [em Copacabana]. Passei a ser bastante demandado em meu trabalho e isso começou a dificultar que eu desse aulas de Aikido. Nesse período só conseguia ir à academia da Praça da Bandeira uma vez por semana.

 

Sensei João Gaeschlin: Quem auxiliava o senhor nas aulas quando estava ausente?

Nakatani Sensei: O Adélio [Andrade]. O Pompílio também. No caso do Adélio, ele estava em uma loja na frente da academia e por isso me ajudava bastante. Mas chegou um momento em que entrei em contato com [Yasuo] Kobayashi e ele enviou [Ichitami] Shikanai ao Brasil para assumir minhas turmas.

 

Sensei João Gaeschlin: Quando o senhor se afastou do Aikido?

Nakatani Sensei: Acho que foi no meio de 1972 ou 1973 que eu tive que começar a me afastar.

 

Sensei João Gaeschlin: O [Sensei] Adélio já era faixa-preta?

Nakatani Sensei: Sim, era faixa-preta.

 

Santos Sensei ao centro e Adélio Sensei (6º Dan da Aikikai) ao lado
(Fonte: acervo de Adélio Sensei)

 

Sensei Adélio Andrade aplicando Sankyo

(Fonte: acervo de Adélio Sensei)


Sensei João Gaeschlin: Então em face das dificuldades [em continuar ensinando] o senhor buscou um substituto no Japão?

Nakatani Sensei: Sim, entrei em contato com [Yasuo] Kobayashi que havia estudado na mesma Universidade que eu. Kobayashi enviou [seu aluno Ichitami] Shikanai, e, quando ele chegou ao Brasil [em 1975] entreguei a ele as turmas de Aikido e a partir daí eu quase não fui mais à academia.

 

Sensei João Gaeschlin: Os seus alunos continuaram treinando com ele?

Nakatani Sensei: Sim, continuaram.

 

Sensei João Gaeschlin: Por que o senhor não escolheu um aluno seu para assumir as turmas?

Nakatani Sensei: Não havia quem pudesse ensinar. Todo mundo tinha um trabalho ou um negócio próprio [que dificultava assumir as turmas]. Pouca gente tinha tempo livre [que pudesse dedicar ao ensino nas aulas]. Os únicos que tinham [um pouco mais de tempo disponível] eram o Adélio e o Pompílio, que acredito estava perto de se aposentar. Só eles. Os demais não tinham como ensinar. Não se trata da capacidade para ensinar não, apenas que trabalhavam e por isso não tinham condições de ensinar [por falta de tempo]. 

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor poderia falar um pouco do filme [Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa, de 1971] de que participou? O convite partiu de algum de seus alunos?

Nakatani Sensei: Sim. O diretor do filme foi Roberto Farias, irmão de Reginaldo Farias. Se não me engano, ele já era 1º kyu [faixa marrom] na época, de modo que deveria estar treinando comigo por mais de dois anos.

 

Sensei João Gaeschlin: O convite inicial foi para atuar?

Nakatani Sensei: Não. Inicialmente fui chamado para ensinar [técnicas de] espada [japonesa]. Depois falaram para eu trocar de lugar com o artista. Ele, coitado, que tinha sido escalado para o papel, foi dispensado por minha causa, mas eu não era ator...

 


Teruo Nakatani como o samurai Eugênio em cena do filme Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa

(Fonte: https://www.facebook.com/nakatani.sensei/photos)


Sensei João Gaeschlin: Como foram as filmagens? O Senhor realmente viajou para as filmagens como é mostrado no filme?

Nakatani Sensei: Sim, passei dois meses no exterior.

 

Sensei João Gaeschlin: E gostou da experiência de atuar?

Nakatani Sensei: Sim, é um trabalho bem diferente!

 

Sensei João Gaeschlin: Como o senhor conheceu o Sensei Martins [primeiro faixa-preta a vir dar aulas em Brasília]?

Nakatani Sensei: Ele entrou na turma da Praça da Bandeira quando várias pessoas do Banco do Brasil se matricularam. Tinha algumas delas na Barata Ribeiro (Copacabana), mas a maioria estava na Praça da Bandeira. Essa turma foi montada a pedido de Pompílio. Eu montei, mas não tinha muito tempo livre, pois já tinha uma firma naquela época. Então perguntei se alguém poderia me ajudar e o Guru se prontificou e ele ficou meio que encarregado daquele grupo.

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor se lembra dele treinando? Quando começou, quando chegou a faixa-preta?

Nakatani Sensei: Demorou um pouco para que eu conseguisse formar faixas-pretas. O primeiro não estou certo, mas acho que foi o Guru, depois o Carlos Infante, Marcus, Paraguassu, depois vieram vários...

 

Sensei João Gaeschlin: Os exames eram feitos em sua academia?

Nakatani Sensei: Sim.

 

Sensei João Gaeschlin: Sensei Martins fez o dele em Campos do Jordão. O senhor se recorda disso?

Nakatani Sensei: Sim. Houve um Gasshuku [período intensivo de treinamento] em conjunto com Kawai Sensei e vários alunos fizeram exame nessa oportunidade. Recebi um convite de Kawai Sensei e aceitei e convidei meus alunos para participar.

 

Sensei João Gaeschlin: Por que o senhor parou de dar aulas?

Nakatani Sensei: Basicamente por causa do trabalho. Eu era demandado inclusive aos sábados e domingos, porque precisava acompanhar obras em andamento. Muitas vezes até mesmo à noite. Além disso, tive reumatismo no joelho direito e não conseguia mais dobrá-lo e por isso tinha dificuldades em sentar ou ficar em seizá [tradicional postura sentada japonesa que é empregada nas saudações nas aulas de Aikido].

 

Sensei João Gaeschlin: O senhor sentiu falta [das aulas]?

Nakatani Sensei: Sim, no início senti bastante falta, mas hoje já se passaram mais de quarenta anos... 

 

Sensei João Gaeschlin: Que conselho o senhor daria aos alunos de hoje? Sugeriria algum exercício em especial?

Nakatani Sensei: Eu diria para atentarem ao cuidado com a saúde, sobretudo lembrando que um dia se tornarão mais velhos. Se querem continuar a treinar [até idades mais avançadas], eu diria para evitar forçar [o treino] em demasia, a não desconsiderarem a importância de treinos suaves.

 

Sensei João Gaeschlin: E as práticas de suwari waza?

Nakatani Sensei: Elas são muito boas para o fortalecimento do quadril. Eu sei que muita gente não gosta, mas é uma boa ginástica para fortalecer o quadril.

 

Sensei João Gaeschlin: Há algum movimento que o senhor considere essencial no Aikido?

Nakatani Sensei: Não há segredo, já está tudo nas formas praticadas. O importante é seguir na prática, a menos que haja razões relevantes para interromper, como problemas de saúde, tendo sido esse o meu caso em virtude da lesão de meu joelho.

 

Sensei João Gaeschlin: E para nós professores, que estamos ensinando as pessoas que estão  começando agora, que conselho o senhor nos daria para transmitirmos a nossos alunos?

Nakatani Sensei: Hoje em dia as pessoas precisam fazer algo para preserva a saúde não é? Como por exemplo ginástica. Muitas vezes, praticar uma atividade física sozinho pode ser algo desinteressante. No Aikido, há um acordo de que um projeta o companheiro de treino e depois é a vez de o outro projetar. Acho que essa é uma boa maneira de praticar atividade física.

 

Sensei João Gaeschlin: Qual sua opinião acerca dos ensinamentos de Mestre Ueshiba, dessa ligação do lado material com o lado espiritual que o Aikido proporciona?

Nakatani Sensei: Ele sempre enfatizava que o corpo humano tinha uma espécie de ligação com Deus, por isso deveríamos sempre ter em mente a forma como o corpo é utilizado. Era sobre isso que ele falava na maioria das vezes.

 

Sensei João Gaeschlin: E o senhor acredita nisso?

Nakatani Sensei: Tenho que acreditar. Naquela época, ele era um artista marcial muito respeitado e muito forte também. Essa não era apenas a opinião dos praticantes de Aikido. Lutadores de Kendo, de Karatê, havia vários que o respeitavam. Talvez por isso alguns dissessem que o único que conhecia verdadeiramente o Aikido era ele. O corpo dele era fora do comum em comparação com o de outras pessoas.

 

Sensei João Gaeschlin: Como eram essas outras práticas que ele fazia com os alunos? Refiro-me a treinos no mar, nas cachoeiras... Como eram esses treinos e qual era o propósito deles?

Nakatani Sensei: O treino nas cachoeiras era uma prática de Buda, que usava o frio da água para treinar o espírito e deixá-lo mais forte. O treino no mar começou com o Karatê, cujos praticantes realizavam chutes dentro da água. O mar é muito forte e o movimento das ondas exige muito equilíbrio. Foi assim que começou esse tipo de treino no sul do Japão e depois outras artes marciais começaram [a fazê-lo] também.

 

Morihei Ueshiba e Kishomaru Ueshiba treinando próximos a uma queda d´água

 (Fonte: Aikido Sangenkai)


Sensei João Gaeschlin: Havia treinamentos de ki e respiração também?

Nakatani Sensei: Sim, o Fundador sempre falava sobre isso.

 

Sensei João Gaeschlin: E como era esse tipo de treino?

Nakatani Sensei: Desculpe, mas já faz muito tempo. Não me lembro em detalhes.

 

Sensei João Gaeschlin: Certa vez o senhor comentou que em sua cidade não havia médicos de modo que, se alguém se machucasse, os próprios moradores faziam massagens. Pode falar um pouco sobre isso?

Nakatani Sensei: Sim, minha cidade era muito pequena, cerca de seis mil habitantes. Eu tive um acidente quando criança com esse dedo e um médico poderia tê-lo salvo sem necessidade de amputar a falange distal, mas não havia médicos na ocasião.

 

Sensei João Gaeschlin: E se alguém se machucava no treino?

Nakatani Sensei: Ah, o pessoal do Judo sabe bem como agir nesse tipo de situação.

 

Sensei João Gaeschlin: E o que é feito? Shiatsu?

Nakatani Sensei: Não, às vezes era um trabalho de "colocar o osso no lugar" [redução da fratura], para facilitar o processo de cura e regeneração do osso se for o caso.

 

Sensei João Gaeschlin: E o senhor aprendeu a fazer Shiatsu também?

Nakatani Sensei: Não, isso eu não sei fazer.

 

Sensei João Gaeschlin: Mestre Martins disse que o Senhor fazia alguma espécie de massagem também, se alguém se machucasse nos treinos...

Nakatani Sensei: Sim, era aquele tipo de prática que mencionei que o pessoal do Judo faz.

 

Sensei João Gaeschlin: Sensei, o senhor respondeu a todas as minhas perguntas. Há alguma coisa que o senhor queira acrescentar?

Nakatani Sensei: Deixa só eu tentar ser um pouco mais preciso quanto a datas... Cheguei no Brasil em 6 de novembro de 1960. Depois do primeiro Carnaval vim para o Rio de Janeiro de mudança. Estava muito quente naquela época dentro da academia em que comecei a dar aulas. [4]

 


Navio holandês Boissevain, lançado em 1937, cinco anos após o nascimento de Nakatani Sensei e que o trouxe ao Brasil em 1960 e que teve suas atividades encerradas em 14/07/1968 no porto de Yokohama

(Fonte: https://www.novomilenio.inf.br/rossini/boisseva.htm)




Ficha de imigração de Teuro Nakatani
(Fonte: acervo pessoal do entrevistado)



Teruo Nakatani consta no 183º item da lista de passageiros do Boissevain



Sensei João Gaeschlin: Então o Senhor começou a ensinar em 1961, talvez no final de 1961?

Nakatani Sensei: Sim, final de 1961 ou início de 1962... o tempo voa... foi depois de um ano da minha chegada.



Nakatani Sensei sereno em suas profundas meditações sobre a vida, que costumava fazer ao tomar um bom café na padaria em frente a sua casa

 

Sensei João Gaeschlin: Muito obrigado pela entrevista Sensei! Suas palavras são muito importantes para preservar a memória do Aikido.

Nakatani Sensei: Só para concluir, comecei a dar aulas no Hospital dos Servidores, na academia de Judo do Sensei Ogino, que dava aulas quase todos os dias. Eu dei aulas ali segundas, quartas e sextas-feiras. Depois, por volta de 1964, comecei a dar aulas na academia de George Mehdi.

 

[1] Diversas artes marciais tiveram sua prática proibida por aproximadamente 4 anos com a ocupação norte-americana no Japão. A prática de Kendo foi liberada oficialmente em 1952, quando sensei Nakatani estava com 20 anos de idade. O período mencionado de dez anos do início da guerra diz respeito ao fato de que, em relação a Segunda Guerra Mundial, é comum entre os historiadores considerar que o Japão ingressou no conflito em dezembro de 1941, de modo que a liberação ocorreu aproximadamente dez anos depois, ou seja, em 1952, o que confirma a lembrança de Nakatani Sensei.

[2] Possivelmente o grupo a que se refere Nakatani Sensei é a Tempukai, fundada por Tempu Nakamura em 1919, cuja prática física costuma ser denominada “ioga japonesa” (https://www.tempukai.or.jp/).

[3] Hiroshi Tada nasceu na prefeitura de Nakasaki, Japão em 13 de Dezembro de 1929. Tada Sensei começou Aikido na Aikikai em 4 de Março de 1950 (aos 20 anos, 2 meses e 22 dias de idade), quase 5 anos após anúncio da rendição incondicional do Japão às Forças Aliadas da Segunda Guerra Mundial. Dois anos depois que as forças de ocupação deixaram o Japão, Tada Sensei tornou-se instrutor na Aikikai em 1954. Em 1957 ele foi promovido para 6º Dan. Com 40 anos de idade, em 1969, Tada Sensei foi promovido a 8º Dan. Antes do Aikido, praticou Karatê no clube desta arte marcial existente na Universidade de Waseda. Hoje detém o 9º Dan da Aikikai.

[4] O nome de Sensei Teruo Nakatani de fato consta no item de número 183 da lista de passageiros chegados ao Brasil no navio holandês Boissevain em 6 de novembro de 1960. As listas de passageiros podem ser consultadas no sítio do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN) na Internet.

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